Aos 74 anos, morre a cantora Mercedes Sosa
A cantora argentina Mercedes Sosa morreu neste domingo, no hospital Trinidad, em Buenos Aires, onde estava internada desde meados de setembro.
As vozes mais à esquerda poderiam resumir o parágrafo acima a quase um slogan: "a voz dos sem voz se calou". O coro postado mais à direita provavelmente se sentiria aliviado: durante a ditadura militar que governou a Argentina entre 1976 e 1983, Mercedes era o grilo falante e cantante que insistia em evocar a consciência de que a intolerância e a perseguição política não se afina com a dignidade humana.
Deixando de lado as paixões políticas, seria justo dizer que morreu uma das principais cantoras latino-americanas, a voz maior de clássicos como Volver a los 17, uma artista que ignorou fronteiras artísticas e geográficas, celebrando um ideal latino ao dividir canções, álbuns e palcos com Milton Nascimento, Charly García, Fagner, Antonio Tarragó Ros, Beth Carvalho, Joan Manuel Serrat, Shakira e Fito Páez.
Para aquela que imortalizou Gracias a la Vida (da chilena Violeta Parra), a boa música exigia independência artística. Por exemplo, no show que La Negra (apelido recebido pela cor de sua vasta cabeleira) fez há dois anos nem Porto Alegre, o repertório incluía Coração de Estudante (Nascimento e Wagner Tiso), mas também Gente Humilde (Garoto, Vinicius de Moraes e Chico Buarque) e Un Vestido y un Amor (Páez) e El Cosechero, que ela interpretou ao lado de seu amigo Luiz Carlos Borges, acordeonista gaúcho.
Mercedes mostrou que sua o fato de colocar sua voz forte incondicionalmente a serviço de quem é fraco não a fazia perder sua lucidez. Comentando avanços sociais e políticos na América Latina, ela cravou:
— Não é a esquerda que está no poder, são alguns políticos de esquerda que estão no poder. Depois do desmembramento da União Soviética, o capitalismo está sozinho.
Essa lucidez sempre custou caro a Mercedes. Ela teve de exilar-se em Madri entre 1979 e 1982, depois de receber ameaças de morte de grupos extremistas de direita. Sua partida, inclusive, foi precipitada por um show que fez em La Plata, quando ela e todo o público que a tinha ido assistir foram detidos.
Porto Alegre também foi testemunha de um episódio de provocação terrorista contra ela. Em 1980, durante um show no Gigantinho, alguém detonou uma bomba de efeito moral para provocar correria e choro entre a plateia e inviabilizar o concerto da argentina. Até que Mercedes assumiu o comando com sua voz, e acalmou o público, que se juntou a ela em um coro emocionado. Anos mais tarde, Mercedes recebeu uma homenagem mais formal de parte dos gaúchos: em 1996, ela foi agraciada com a Medalha Simões Lopes Neto, outorgada pelo governo do Rio Grande do Sul.
Um dos últimos reconhecimentos que Mercedes recebeu foram três indicações para o Grammy Latino 2009 pelo álbum Cantora 1, que reúne duetos dela com vários artistas. O anúncio do vencedor será realizado no dia 5 de novembro em Las Vegas, mas o resultado da vida de Mercedes já é conhecido desde há muito tempo: La Negra iluminou com sua voz alguns dos tempos mais escuros que a América Latina já experimentou.
Missioneira
Composição: Mauro Ferreira / Luiz Carlos Borges
Eu pela noite negra dos teus cabelos
Tu apagando o rastro do teu olhar
Pra que rincões a vida levou teus passos
Flor das missões que vive nos sonhos meus
Como entender que um dia estando em meus braços
Com luz de sol me sorriu
E com uma voz de rio disse adeus
E é este amor que me traz assim
Peregrino em busca do teu querer
E é minha dor que jamais tem fim
Que serena os lírios no amanhecer
Linda missioneira da voz de rio
Flor que na fronteira da solidão
Me adoçou a boca e depois partiu
E amargou pra sempre meu coração
Por onde andarás, por onde andarei
Que será do amor que eu jurei por ti
Que será de ti sem o que eu te dei
Que será de mim que já te perdi
Sangra a terra vermelha dessas estradas
Arde no sal do rosto o sol do verão
E eu qual um andarilho pelas estradas
Vou maldizendo os rumos dessa paixão
Louco de amar assim teu amor selvagem
Louco de amar a imagem que eu quero bem
Sem entender que passas pela paisagem
Igual a flor de aguapé que é linda
Mas que não é de ninguém!
Filha que letra bem linda!!!